8 de dez. de 2015

Eucaristia e Ecumenismo: o desafio da unidade

"Que cada um se examine a si mesmo, e assim coma desse pão e beba desse cálice." (1 Co 11:28).

Como protestante histórico e membro de uma das Igrejas-membro do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, orgão ecumênico composto pelas Igrejas: Católico Romana, Confissão Luterana, Episcopal Anglicana, Presbiteriana Unida e Sirian Ortodoxa) faço uma reflexão sobre o ecumenismo e o ponto principal que impede o ecumenismo pleno: a questão da Eucaristia.

Muito se avançou com do diálogo ecumênico no Brasil, por exemplo, atividades intereclesiais, Semana de Oração pela Unidade Cristã, Campanha da Fraternidade Ecumênica, agenda em prol da defesa dos direitos humanos e promoção da paz e o reconhecimento mútuo da administração do sacramento do batismo entre Igrejas-membro do CONIC ¹. Mas, apesar destes avanços ainda estamos longe da plena comunhão.

Este é um tema com o qual convivo à algum tempo, especialmente por eu ser militante do ecumenismo e diálogo inter-religioso. Mas participando de uma celebração do CONIC-MG é que me veio um insight para a escrita deste texto.

O cenário é a Capela Curial Nossa Senhora do Rosário, Igreja mais antiga de Belo Horizonte (foto ao lado). A celebrante é a Pastora Aneli (Confissão Luterana) e a celebração era de Advento. Estava tudo lindo, a liturgia, o coral, a recepção do capelão Mons. Geraldo que leu uma belíssima oração do Papa Francisco sobre unidade, e a Igreja de Cristo que ali se reunia, diversa, porém una. Apesar de toda essa beleza, que não é rara em nossos encontros ecumênicos, falta algo essencial: a eucaristia.

Entendo a Eucaristia como o maior dos sacramentos, o momento em que Cristo e sua Igreja (Igreja em um sentido amplo, que engloba diversas tradições) se tornam um, o momento em que olhamos para o próximo e discernimos o corpo de Cristo. 

Mas o que impede a celebração eucarística ecumênica?

Bem, basicamente as normas da Igreja Católica, uma vez que a mesa do Senhor é aberta a todos os cristãos batizados nas Igrejas Episcopal Anglicana, Presbiteriana Unida e de Confissão Luterana. Para a Igreja Católica a Eucaristia só tem validade se celebrada por um ministro ordenado, de acordo com a sucessão apostólica o que impossibilita um católico de comungar em uma Igreja Protestante. 

Mas o que impede então a prática da "Hospitalidade Eucarística" na Igreja Católica?

O Código de Direito Canônico no cânon 844 que diz:

§ 1. Os ministros católicos só administram licitamente os sacramentos aos fiéis católicos, os quais de igual modo somente os recebem licitamente dos ministros católicos, salvo o preceituado nos §§ 2, 3 e 4 deste cânon e do cânon 861 § 2. § 2. Todas as vezes que a necessidade o exigir ou a verdadeira utilidade espiritual o aconselhar, e desde que se evite o perigo de erro ou indiferentismo, os fiéis a quem seja física ou moralmente impossível recorrer a um ministro católico, podem licitamente receber os sacramentos da penitência, Eucaristia e unção dos enfermos dos ministros não católicos, em cuja Igreja existam aqueles sacramentos válidos. § 3. Os ministros católicos administram licitamente os sacramentos da penitência, Eucaristia e unção dos enfermos aos membros de Igrejas orientais que não estão em comunhão plena com a Igreja católica, se os pedem espontaneamente e estão bem dispostos; e esta norma vale também respeito aos membros de outras Igrejas, que, a juízo da Sé Apostólica, se encontram em igual condição que as citadas Igrejas orientais, pelo que se refere aos sacramentos. § 4. Se há perigo de morte ou, a juízo do Bispo diocesano ou da Conferência Episcopal, urge outra necessidade grave, os ministros católicos podem administrar licitamente esses mesmos sacramentos também aos demais cristãos que não estão em comunhão plena com a Igreja católica, quando estes não possam acudir a um ministro de sua própria comunidade e o peçam espontaneamente, com tal de que professem a fé católica respeito a esses sacramentos e estejam bem dispostos. § 5. Para os casos excetuados nos §§ 2, 3 e 4, o Bispo diocesano ou a Conferência Episcopal não devem dar normas gerais sem ter consultado a autoridade, pelo menos local, da Igreja ou comunidade não católica de que se trate.²

O parágrafo 4 é bem claro acerca das condições para administração da Eucaristia para não católicos: basicamente perigo de morte. Ou seja, o Código de Direito Canônico elimina a possibilidade de Hospitalidade Eucarística. Entendo que isto é devido as diferenças históricas entre as Igrejas no que diz respeito ao santíssimo sacramento, e como a Igreja Católica se entende como a zeladora desse sacramento, ela nega a comunhão aos que a entendem de modo diverso. Sem entrarmos na questão do ministério ordenado, as diferenças no entendimento da Ceia nas Igrejas-membro do CONIC ao meu ver são pequenas, todas (ao seu modo) acreditam na presença real de Cristo e não na ceia apenas como um memorial.³

O Concílio Vaticano II é ambíguo sobre o tema:

Não se pode considerar a comunicação nos sacramentos (communicatio in sacris) como meio a ser empregado indiscriminadamente na busca da restauração da unidade entre os cristãos. Essa comunicação depende principalmente de dois princípios: da necessidade de expressar a unidade da Igreja e da participação nos meios da graça. A expressão da unidade geralmente proíbe a comunicação nos sacramentos; a busca da graça às vezes a recomenda (UR. 8).

O Concílio não proíbe a comunicação nos sacramentos embora afirme que não deve ser empregado indiscriminadamente. Apesar desta posição do Concílio, intruções posteriores proibiram a intercomunhão quase total com protestantes. Um exemplo é a Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis (22 de fevereiro de 2007) em que o Papa Bento XVI proíbe cristãos não católicos de participarem da Eucaristia:

56. Ao tratarmos o tema da participação, temos inevitavelmente de falar dos cristãos que pertencem a Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. A este respeito, temos de dizer, por um lado, que o vínculo intrínseco existente entre a Eucaristia e a unidade da Igreja nos faz desejar ardentemente o dia em que poderemos celebrar, juntamente com todos os que crêem em Cristo, a divina Eucaristia e exprimir assim visivelmente aquela plena unidade que Cristo quis para os seus discípulos (Jo 17, 21); mas, por outro lado, o respeito que devemos ao sacramento do corpo e do sangue de Cristo impede-nos de fazer dele um simples « meio » usado indiscriminadamente para alcançar a referida unidade.(172) De facto, a Eucaristia não manifesta somente a nossa comunhão pessoal com Jesus Cristo, mas implica também a plena comunhão (communio) com a Igreja; este é o motivo pelo qual, com dor mas não sem esperança, pedimos aos cristãos não católicos que compreendam e respeitem a nossa convicção, que assenta na Bíblia e na Tradição: pensamos que a comunhão eucarística e a comunhão eclesial se interpenetrem tão intimamente que se torna geralmente impossível aos cristãos não católicos terem acesso a uma sem gozar da outra. Ainda mais desprovida de sentido seria uma concelebração verdadeira e própria com ministros de Igrejas ou Comunidades eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. Não deixa, porém, de ser verdade que, em ordem à salvação eterna, há a possibilidade de admitir indivíduos cristãos não católicos à Eucaristia, ao sacramento da Penitência e à Unção dos Enfermos; mas isso supõe que se verifiquem determinadas e excepcionais situações, associadas a precisas condições.(173) Estas aparecem claramente indicadas no Catecismo da Igreja Católica (174) e no seu Compêndio.(175) É dever de cada um ater-se a elas fielmente.

No fragmento supracitado, fica claro uma postura não-ecumênica do Papa Bento XVI, uma vez que se esperamos a unidade plena das Igrejas acontecer primeiro, não há ecumenismo. 

Já o Papa Francisco em visita a uma Igreja Evangélica Luterana em Roma (15 de novembro de 2015), onde participou de uma sessão de Perguntas e Respostas, foi perguntado por uma mulher Luterana casada com um católico italiano sobre a possibilidade "de finalmente participarem juntos da comunhão". Segue a resposta do Papa:

"É verdade que, em certo sentido, compartilhar significa que não há diferenças entre nós, que temos a mesma doutrina – ressaltando essa palavra, uma palavra difícil de compreender. Mas eu me pergunto: mas não temos o mesmo Batismo? Se temos o mesmo Batismo, não deveríamos estar caminhando juntos?
Quando você se sente uma pecadora – e eu sou muito mais que um pecador – quando seu marido sente que ele pecou: ​​você vai diante do Senhor e pede perdão, seu marido faz o mesmo e também vai ao padre e pede a absolvição … Quando você ensina seus filhos sobre quem é Jesus? Por que Jesus veio? O que Jesus faz por nós?... vocês estão fazendo a mesma coisa, quer na linguagem Luterana quer na católica, mas é o mesmo.
A questão... A ceia? Há perguntas que somente se alguém é sincero consigo mesmo e tem uma pequena luz teológica, pode responder por conta própria. Veja por si mesmo...
É um problema que cada um deve responder [para si]...
Um pastor-amigo me disse uma vez que: “Acreditamos que o Senhor está presente lá, ele está presente’- você acredita que o Senhor está presente. E qual é a diferença? Há explicações, interpretações, mas a vida é maior do que explicações e interpretações. Sempre refira-se ao seu batismo – uma só fé, um só batismo, um só Senhor...
Eu nunca me atreveria dar permissão para fazer isso, porque não é de minha competência. Um só batismo, um só Senhor, uma só fé. Fale com o Senhor e, em então, vá adiante. [Pausa] E eu não me atreveria – Não me atrevo a dizer nada mais".

O Papa Francisco por sua vez, diz que por termos um só batismo, um só Senhor e uma só fé: que cada um se examine. Alguns sites católicos conservadores se opuseram veementemente a opinião de Bergoglio, mas há também opiniões que convergem com a do Papa, como a do Padre Gabriele Cipriani que diz: "Os ministros não são donos da Eucaristia, mas servos. Eles anunciam e servem o Corpo de Cristo aos convivas e não o podem recusar a quem livremente o pede." 

Tratamos de dois temas distintos nesse texto: Intercomunhão (participação de fiéis de diferentes Igrejas cristãs na mesma mesa eucarística, que é a meta do ecumenismo) e Hospitalidade Eucarística (acolhida de membros de outras denominações na ceia celebrada sob responsabilidade de uma das igrejas, que é o primeiro passo rumo a intercomunhão).

Para concluir, os fatos são: 1. a Igreja Católica se sente guardiã da celebração eucarística, 2. todavia, existem convergências importantes entre as Igrejas-membro do CONIC no que diz respeito a eucaristia; 3. O objetivo da intercomunhão é ousado e inviável para o momento; 4. A Hospitalidade Eucarística traz pra Igreja Católica o risco da comunhão ser administrada de modo indiscriminado; 5. O cenário contemporâneo impele as Igrejas a fortalecerem o diálogo ecumênico, sendo o momento oportuno para o amadurecimento da questão eucarística.

Temos então como saída possível para o momento a prática da Hospitalidade Eucarística apenas em situações específicas, como por exemplo nos encontros ecumênicos (eliminando assim, o risco do uso indiscriminado e injustificável da eucaristia), ancorada no autoexame e no um só batismo, um só Senhor e uma só fé.

De minha parte aguardo ansiosamente para que a opinião plantada pelo Papa Francisco floresça nos corações, a fim de que possamos alcançar a tão sonhada unidade cristã. 



NOTAS:



2.Paróquia Nossa Senhora da Piedade. A Sagrada Comunhão não pode ser dada aos cristãos evangélicos. Disponível em: http://paroquiadapiedade.com.br/formacao/liturgica/a-sagrada-comunhao-nao-pode-ser-dada-aos-cristaos-evangelicos/ Acesso em: 07 dez. 2015.

3. Ver documento do CONIC: Hospitalidade Eucarística.

4.RAUSCH, Thomas. Rumo a uma Igreja verdadeiramente Católica. Edições Loyola, 2008.

5.BENTO XVI. Sacramentum Caritatis. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/apost_exhortations/documents/hf_ben-xvi_exh_20070222_sacramentum-caritatis.html Acesso em: 07 dez. 2015.

6.Dominus Est. Francisco: Eucaristia para Luteranos? Disponível em: http://catolicosribeiraopreto.com/francisco-eucaristia-para-luteranos/ Acesso em 07 dez. 2015.

7.IHU. Igreja Católica e os princípios do ecumenismo. Uma caminhada difícil. Entrevista especial com Gabriele Cipriani. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/41147-igreja-catolica-e-os-principios-do-ecumenismo-uma-caminhada-dificil-entrevista-especial-com-gabriele-cipriani- Acesso em: 07 dez. 2015.


Guilherme Freitas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário