12 de jul. de 2018

O Ecumenismo em João Calvino

Charge por Patrick Chappatte, após visita ecumênica
do Papa Francisco em Genebra em jun. 2018.
Texto extraído do livro O Humanismo Social de Calvino, de André Bieler. p. 66-69.

Ao envolverem-se nas lutas do século XVI, nem Calvino nem os outros reformadores foram animados pela ideia de combater por verdades estritamente religiosas ou eclesiásticas, ou pela proteção de alguma igreja. O que os apaixonava, antes de mais nada, era o desejo de redescobrir e de fazer triunfar, na sua integridade, a verdade sobre Deus e sobre os seres humanos. Pretendiam, a todo preço, libertar a humanidade de toda forma de servitudes e, em particular, de suas mistificações religiosas. Apenas em segundo plano e como que levados pelas circunstâncias, fizeram-se adversários da instituição eclesiástica. Daí sua angústia ao notar que uma parcela da cristandade não tinha consciência do mal que sofria e que a própria igreja oficial os rejeitava de seu seio. Foi com imenso pesar que se viram obrigados a constituir igrejas separadas. E, mesmo chegando a esse extremo, nunca pensaram – Calvino particularmente – que formavam igrejas autônomas, definitivamente desligadas do resto da cristandade.

Tinham, pelo contrário, consciência de pertencer à igreja autêntica, à igreja histórica reencontrada, à igreja cristã restaurada, à igreja católica, apostólica e santa de todos os tempos, ao corpo único de Cristo. Sofriam vendo os membros desse corpo, momentânea e exteriormente, divididos entre si.

Quando se apresentam os reformadores como fundadores de uma seita religiosa que busca para si mesma o cultivo de uma religião ideal, comete-se um duplo erro histórico e teológico. Nenhum deles jamais desejou fundar alguma coisa que, mais tarde, se chamasse protestantismo ou que devesse durar eternamente. O calvinismo como tal nunca esteve nas cogitações de Calvino. Historicamente falando, o calvinismo é um episódio da história do cristianismo e esta, por sua vez, um aspecto da História universal. Donde nada ser mais estranho ao pensamento de Calvino do que o confessionalismo erigido em entidade fechada e auto-suficiente.

“Cremos que ninguém deve isolar-se ou contentar-se consigo mesmo; antes, devemos, juntos, guardar e preservar a unidade da igreja...”, diz o artigo 26º da Confissão de La Rochelle, composta por Calvino e adotada pelo primeiro sínodo nacional das Igrejas Reformadas da França, em 1559.

Para Calvino, a igreja é una não tanto porque os cristãos, independentemente da sua origem, devem estar unidos, mas porque sua unidade já é uma realidade pelo simples fato de que, pela fé, são membros do corpo de Cristo. A igreja é universal não somente porque é composta de crentes espalhados por todo o mundo, mas principalmente porque Cristo é o único Salvador da todas as pessoas na Terra e porque todos hão de comparecer na sua presença ao fim da História.

Contra essa unidade de fato do corpo de Cristo, as divisões humanas são impotentes. Estas, apesar de graves, são apenas acidentais, superficiais e provisórias.

Calvino chega a admitir que, na igreja papista, subsistem restos visíveis da igreja a que ele pertence. Daí tudo fazer para evitar a ruptura enquanto ainda restasse uma esperança da reconciliação. 

Percorre a Europa e comparece a todos os colóquios onde a discussão com a Igreja Romana oferece possibilidades frutíferas: Haguenau, em 1540; Worms, em 1541; e Ratisbona. Afastado do diálogo, persevera na conversação, comentando, por escrito, as primeiras decisões do Concílio de Trento. Declara estar disposto “a se fazer cortar a cabeça a fim de que a paz seja restabelecida no seio da igreja”. E quando, do lado católico, não resta qualquer esperança, tenta o impossível para restaurar a unidade do protestantismo dividido em partidos luteranos, zuinglianos, anglicanos e reformados. Cônscio da diversidade das reações humanas diante da Palavra de Deus, não tenta impor uma unidade compacta. Aceita a diferença entre “a doutrina pela qual a igreja de Cristo se mantém”, comum a todos os cristãos, e a diversidade de interpretações e costumes próprios de cada denominação confessional. “Não se deve criar problemas por causa de uma casula ou de uma vela”, diz ele.

Convidado em 1552 por Cranmer, arcebispo anglicano de Cantuária, diz-nos pronto a “atravessar dez mares, se necessário,” para promover a unidade da igreja. Para servir à unidade, porém, não se deve ceder no plano da verdade. Pelo contrário, somente na única verdade que é em Cristo, rigorosamente proclamado, é que a unidade dos cristãos pode realizar-se visivelmente.

Quanto mais se desvencilhar o Evangelho das aderências religiosas suscitadas pelo paganismo, dos ritos supersticiosos, das liturgias obscurantistas, dos costumes folclóricos, das tradições locais, das imagens, filosofias e doutrinas estranhas, tanto mais rapidamente pode-se reencontrar o caminho da unidade em Cristo.

De todas as confissões cristãs, o calvinismo é uma das mais ecumênicas por uma razão fundamental: ele nunca se enclausurou em uma definição rigorosa, absoluta e definitiva de seus dogmas. Proclamou sempre que a única autoridade da igreja é a Bíblia. Mas essa Bíblia, diz o calvinismo, é o livro humano que dá testemunho de Cristo, a Palavra de Deus por excelência, autoridade soberana e viva a qual à igreja se submete. A igreja como tal, pois, não possui sua própria autoridade; antes, ela deve deixar-se sempre conduzir e reformar pela única autoridade que é o Cristo que vive e age na história humana pelo seu Santo Espírito.

A igreja acha-se, assim, em movimento, num constante devir, sempre aberta e reformável, sempre no encalço de novas descobertas a seu respeito.

Razão por que o humanismo de Calvino não tem fronteiras religiosas. Abre-se, ao contrário, ao mundo como um todo. É um humanismo universal capaz de romper as barreiras que as pessoas erguem umas contra as outras. Em Cristo, abolem-se as fronteiras nacionais, ideológicas e raciais.


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