4 de jul. de 2018

Rosário Anglicano: origem, simbolismo, influências e uso por protestantes. Primeiros apontamentos

Introdução

Há alguns anos escrevi um texto sobre o Rosário Anglicano intitulado Curiosidade: Terço Protestante. Eu tinha acabado de descobrir esta forma de oração no meio protestante quando o escrevi. Relendo-o senti a necessidade de aprofundar no tema e fundamentar melhor seu uso.

Antes de tudo, quero enfatizar que apesar de na nossa cultura quando falamos "rosário" e "terço" associamos imediatamente a tradição católico-romana, o uso de cordões de oração são usados tradicionalmente ​​por membros de várias tradições religiosas além do catolicismo ocidental como o Hinduísmo, Budismo, cristianismo oriental, Islamismo, etc. para marcar as repetições de orações, cânticos ou devoções.

O principal ponto que faz os protestantes rejeitarem o uso de um cordão de orações é o fato desse uso se ancorar na tradição cristã e não na Bíblia (embora Nm 15:38,39 abre possibilidade de discussão). É o mesmo motivo que faz boa parte rejeitar o uso de paramentos litúrgicos, velas, símbolos e até mesmo o crucifixo. A partir desse ponto podemos elencar um outro: o anticatolicismo de boa parte dos protestantes e evangélicos, que necessitam demarcar até mesmo as mínimas diferenças entre estas duas vertentes do cristianismo. 

Uma dessas mínimas diferenças está no nome dado ao ato de falar com Deus: orar x rezar. A oração seria espontânea e a reza seria fazer uma oração já existente. A reza é rejeitada pela maioria dos evangélicos e protestantes por considerarem-na "Vãs repetições", conforme a interpretação que fazem de Mt 6, 7.

Etimologicamente, orar vem do latim orare; e rezar, do latim recitare. Em latim, os verbos orare e recitare têm sentidos muito próximos: o primeiro significa “pronunciar uma fórmula ritual, uma oração, uma defesa em juízo”; o segundo, “ler em voz alta e clara” [1]. Nos dicionários da língua portuguesa, os termos "orar" e "rezar" são sinônimos. 

Na prática, evangélicos e protestantes usam fórmulas prontas e repetições em suas liturgias. Oram/cantam os Salmos, recitam a oração do Pai Nosso, além dos manuais de liturgia de diversas denominações contarem com modelos de orações escritas para serem utilizadas nos cultos [2].

O cristianismo é muito diverso e podemos enxergar beleza em toda essa diversidade. Não vejo motivo para não aprendermos novas maneiras de oração e meditação da escritura sagrada. Uma destas maneiras é usando cordões de oração, que podem oferecer estrutura e ser um lembrete para orarmos. É uma ferramenta necessária? Evidentemente não! Mas pode ajudar algumas pessoas e servir a um proposito prático como aumentar a concentração e potencializar a meditação.

O Rosário Anglicano

Apesar de alguns anglicanos utilizarem o Rosário católico, em meados da década de 80 do século XX, na Diocese Episcopal do Texas (EUA) foi desenvolvido o Rosário anglicano através de um projeto de oração contemplativa direcionado pelo Rev. Lynn Bauman [3]. 

O Rosário Anglicano é constituído por 33 contas divididas em 1 "Conta Introdutória", 4 grupos de 7 chamados “Semanas”. Entre cada “Semana” há uma conta chamada “Conta Cruciforme”, que juntas formam uma cruz.

O círculo do Rosário Anglicano simboliza a roda do tempo. A oração, recitada ao longo da roda do Rosário, representa a peregrinação espiritual do cristão ao longo do tempo enquanto seguidor de Cristo. Quatro é um número que representa os quatro quadrantes do ano litúrgico (Advento, tempo comum, páscoa, tempo comum), o número sete é repetido quatro vezes no Rosário, criando um mês convencional, e conforme a tradição judaico-cristã, representa a perfeição e a plenitude espiritual. Por fim, o número completo de contas, 33, simboliza a idade de Cristo quando morreu e ressuscitou. Se rezado três vezes, lembra-nos a Santíssima Trindade.

Pouco conhecido no Brasil, o uso deste rosário tem se espalhado pelo mundo sem muito alarde, mas já é utilizado por cristãos de diversas denominações protestantes como os metodistas e reformados [4]. Devido a este uso, digamos, ecumênico do rosário anglicano, muitos o chamam de "contas/cordão de oração cristão", "contas de oração protestante" ou "contas de oração ecumênico".

O bispo anglicano Jubal Neves disse que uma das coisas mais importantes é que o rosário anglicano nos anima a compor nossas próprias orações [9]. Exemplo de oração usando o rosário anglicano:

Cruz: Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém!
Conta Invitatória: Oração do Pai Nosso
Contas Cruciformes: Elevo meus olhos para os montes, de onde virá o socorro? O socorro vem do Senhor que fez os céus e a terra.
Semanas: Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que te amam, ó Senhor!

Influência do cordão ortodoxo

Apesar do rosário anglicano se parecer com o rosário católico, observa-se nele similaridades mais profundas com o cordão ortodoxo.

Contar as orações era uma prática comum entre os monges desde os primeiros séculos da era cristã. A tradição ortodoxa atribui a criação do cordão a  Santo Pacômio (discípulo de Santo Antão, considerado pai do monasticismo), no quarto século, como forma de ensinar os monges analfabetos a cumprirem suas orações diárias.

(Já a origem do rosário católico romano conforme conhecemos hoje, remete ao século XIII, quando, segundo a tradição, em uma aparição a Virgem Maria o entrega a São Domingos Gusmão. A palavra rosário significa "Coroa de Rosas" e diz a tradição católica que cada vez que se reza uma Ave Maria é entregue uma rosa a Virgem Maria.)

Diferentemente do rosário católico, a prática do cordão ortodoxo (komboskini em grego, chotki em russo) não envolve nenhum tipo de “meditação de mistérios”. O cordão de oração está intimamente relacionado à Oração para Jesus, tal qual ensinada pela tradição: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”, oração mais importante da Tradição Bizantina [5].

O komboskini é feito com nós e tem a cor preta, que lembra a humanidade dos seus pecados. O material utilizado é a lã, para lembrar-nos que somos ovelhas e que nossas orações são dirigidas ao Cordeiro de Deus, imolado voluntariamente por nós, levando sobre si todos os nossos pecados e purificando-nos com Sua Misericórdia.

A cada grupo de nós há um separador. Há um cruz que nos lembra o sacrifício de Jesus e por fim uma franja: ela representa a consequência do encontro da oração com o coração daquele que ora: as lágrimas. 

Existem cordões de 33, 50, 100, 300 nós... Com exceção do de 33 nós que representa os anos que Cristo viveu sobre a terra, o número de nós não tem nenhum simbolismo, servindo simplesmente para contar quantas vezes se recita as orações [6]. O uso mais comum do komboskini se dá do seguinte modo:

Segurando a Cruz: 
Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Santo Deus, Santo Forte, Santo Imortal, tem piedade de nós (3 vezes)
Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, agora e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amém.
A cada nó: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador!
A cada separador: Santíssima Mãe de Deus, intercede por mim, pecador!

Apesar desta forma mais usual, o cordão de oração ortodoxo admite variações, podendo ser rezado em cada nó a oração do Espírito Santo (Vem, Espírito Santo, habita em nós), a Ave Maria (Ave, ó cheia de graça, o Senhor é contigo, bendita és Tu entre as mulheres, bendito é o Fruto do Teu ventre), etc. [7].

As semelhanças do rosário anglicano com o cordão de oração ortodoxo são, portanto, o número de contas (33), o uso de orações curtas em cada nó (não é uma regra, mas é o que ocorre geralmente), a possibilidade de variações e, por fim, o fato de ter a função apenas de auxiliar a oração, não sendo uma espécie de amuleto.

Exemplo do uso das contas de oração no protestantismo
Um dos livros de Kristen sobre o
uso de contas de oração para protestantes

Kristen E. Vincent é uma artesã e escritora protestante da Igreja Metodista Unida dos Estados Unidos. Ela tem sido uma das maiores divulgadoras das contas de oração no meio protestante. Ela diz que o seu chamado para introduzir as contas de oração surgiu das suas próprias dificuldades com a oração. Ela defende que as contas de oração podem ajudar as pessoas a encontrarem foco e melhorarem sua vida de oração. Em 2016 a Igreja Metodista Unida em sua Conferência Geral, presenteou seus mais de 2 mil delegados com contas de oração feitos por Kristen [8].

Nas contas de oração feitas por Kristen, além das 33 contas do rosário anglicano, há mais uma conta chamada "conta da ressurreição" inserida entre a conta invitatória e a primeira conta cruciforme. O objetivo desta conta é relembrar a ressurreição de Cristo e sua presença conosco todos os dias.


Considerações finais

Existe um movimento crescente dentro do protestantismo de reconhecimento da riqueza existente nos símbolos. O rosário anglicano tem influência do cordão de oração ortodoxo, carrega densa riqueza simbólica e tem sido adotado por diferentes ramos dentro do protestantismo [4]. Não se constitui como ferramenta necessária para a realização de orações, mas pode ajudar algumas pessoas e servir a um proposito prático como aumentar a concentração e potencializar a meditação. 

Observo que os nomes “Rosário” e “Terço” são designações de um instrumento de oração profundamente relacionado a devoção mariana do catolicismo romano, sendo inadequado o uso destes termos para contas ou cordões de oração de outras tradições religiosas [5]. 

Devido o uso das Contas de oração Anglicanas por protestantes de diferentes denominações, acredito que a designação "Contas de Oração Ecumênicas" seja a mais adequada, primeiro porque evita os nomes "rosário" e "terço" e segundo porque evita o termo "contas de oração protestante", que poderia causar mal estar aos anglicanos mais próximos do catolicismo.

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Permitido o uso desde que citando a referência:

SILVA, Guilherme de Freitas. (2018). Rosário Anglicano: origem, simbolismo, influências e uso por protestantes. Primeiros apontamentos. Disponível em: https://dialogizar.blogspot.com/2018/07/rosario-anglicano-origem-simbolismo.html.


NOTAS:

[1] http://catolicismo.com.br/materia/materia.cfm/idmat/517/mes/Julho2003

[2] Me refiro a manuais de igrejas reformadas (ex.: IPIB), igrejas metodistas, anglicanas, etc.

[3] Anglican Prayer Beads: http://kingofpeace.org/prayerbeads.htm

[4] Prayer Beads for United Methodists: http://www.umc.org/what-we-believe/transcript-prayer-beads-for-united-methodists

https://en.wikipedia.org/wiki/Anglican_prayer_beads

[5] Origem, Tradição e Uso do Cordão Ortodoxo de Orações: https://ortodoxogrego.wordpress.com/2011/05/10/origem-tradio-e-uso-do-cordo-ortodoxo-de-oraes/

[6] Utilização do komboskini (cordão de oração): http://auroraortodoxia.blogspot.com/2014/10/utilizacao-do-komboskini-cordao-de.html

[7] O Cordão de oração: http://arquivoprimeirospassosnaortodoxia.blogspot.com/2013/03/o-cordao-de-oracao.html

[8] Site da Kristen Vincent: http://prayerworksstudio.com/

[9] Orando com o Rosário Anglicano: http://www.regiao1.ieab.org.br/rps/ed%20crista/ed.crista_orando%20com%20o%20rosario%20anglicano.pdf

Links acessados em: 03 jul. 2018


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