6 de jan. de 2021

Protestantismo histórico: uma religião que talvez você não conheça

Para analisar o cristianismo oriundo (diretamente ou indiretamente) da Reforma Protestante do séc. XVI é sempre necessário fazer algumas explicações e estabelecer alguns conceitos, pois os termos usados (protestantes e evangélicos) se tornaram genéricos demais e não servem para definir com precisão a identidade religiosa de alguém. Por exemplo, considerando que o Brasil é um país majoritariamente cristão e com mais de 40 milhões de evangélicos, se alguém me diz que é evangélico, isso me diz pouca coisa e eu sempre preciso fazer mais duas ou três perguntas pra entender melhor qual a identidade religiosa dessa pessoa. A polarização política em nosso país também evidenciou visões diferentes de Deus dentro da religião e acirrou a distância entre grupos protestantes/evangélicos (inicialmente estou tomando protestante e evangélico como sinônimo, mas logo nós precisaremos fazer uma distinção). 

Lincoln's First Presbyterian Church, uma igreja Protestante histórica

Me reconheço enquanto protestante histórico e para explicar melhor vou começar falando um pouco do protestantismo norte-americano.

No final do séc. XIX e início do séc. XX, como reação à influência da ciência moderna na teologia através dos métodos histórico-críticos e o processo de secularização vivido pela sociedade norte-americana, surge o fundamentalismo protestante afirmando a inspiração verbal da Bíblia (cada palavra, cada vírgula foi inspirada por Deus) e sua inerrância (estava isenta de erros em todas as suas afirmações sobre a natureza do mundo e a natureza de Deus). Ocorreu então, na Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América, o que ficou conhecido como a Controvérsia fundamentalista-modernista, uma disputa pelo controle da Igreja e do Seminário de Princeton que se deu entre os conservadores fundamentalistas e os modernistas (estes últimos estavam abertos à usar a crítica histórica para compreender a Bíblia). 

Ao final do processo, os mais conservadores acabaram perdendo a disputa e fundando denominações e seminários próprios. 

Este fenômeno não aconteceu apenas no presbiterianismo, mas se alastrou para outras denominações históricas. Portanto, desde as décadas de 1920 e 1930 as igrejas históricas dos EUA têm sido associadas à um protestantismo mais liberal e ficaram conhecidas como Mainline Protestant Churches (Igrejas protestantes de linha principal). 

São consideradas mainlines nos EUA as sete irmãs: Igreja Presbiteriana (EUA), Igreja Metodista Unida, Igreja Evangélica Luterana na América, Igreja Episcopal (EUA), Convenção Batista Americana, Igreja Unida de Cristo e Discípulos de Cristo, e igrejas afro-americanas: Igreja Episcopal Metodista Africana, Igreja Metodista Episcopal Sião Africana e Igreja Cristã Metodista Episcopal.

Passado alguns anos após a controvérsia entre os ditos modernistas e fundamentalistas, os protestantes conservadores que já não faziam parte das Igrejas Mainline se definiam apenas por Evangelical (evangélico).

Fiz esse breve panorama histórico pra dizer que, grosso modo, o protestantismo norte-americano se divide entre Protestantismo histórico (mainline) e protestantismo evangélico (evangelicals). Vejamos algumas diferenças entre estes dois seguimentos (por ser uma lista geral, um ou dois pontos podem não refletir a característica de alguns seguimentos):

Evangelicalismo

  • Conversionismo: Ênfase na conversão individual, em "nascer de novo" e consequentemente busca por avivamento espiritual;
  • Biblicismo: A Bíblia é a autoridade suprema, é inerrante e é a Palavra de Deus;
  • Ativismo: necessidade de envolvimento individual na pregação do Evangelho, proselitismo;
  • Exclusivismo: único caminho para a salvação é por meio da fé em Jesus Cristo;
  • Ênfase na Santidade: rigor moral, austeridade, abstinência de álcool e tabaco;
  • Dispensacionalismo: crença no arrebatamento e no estabelecimento de um reinado milenar, literal, de Jesus na Terra. Como consequência da leitura literal da Bíblia, em alguns casos, o dispensacionalismo leva ao sionismo cristão - crença de que o ajuntamento dos judeus em Israel é um pré-requisito para a segunda vinda de Jesus.


Protestantismo histórico

  • Não há tanta ênfase na conversão, aquele momento em que a vida espiritual muda drasticamente. Há sim a jornada cristã que se inicia com o batismo (geralmente na infância), passando pela confirmação ou profissão de fé e se desenvolve até a velhice;
  • A Bíblia é autoridade doutrinal e ética devendo ser interpretada de acordo com regras históricas e linguísticas, todavia ela não é mediadora entre Deus e os homens. No protestantismo histórico há grande influência da neo-ortodoxia, a crença de que Jesus é a Palavra de Deus e único mediador entre Deus e os homens.
  • Pregar o Evangelho é mais que compartilhar crenças pessoais, é propagar com atos e palavras a Boa Nova do Reino de Deus, a saber: amor, paz com justiça, igualdade...
  • Inclusivismo: Os protestantes históricos creem que a salvação se dá por intermédio de Cristo, mas acreditam que Cristo pode ser reconhecido em outras culturas, a partir de outras linguagens. Deus e sua graça se manifestam para além do Cristianismo.
  • Escatologia: Geralmente não se lê o livro de Apocalipse literalmente. Ao invés de perpetuar a lógica do "quanto pior, melhor, pois assim Jesus logo volta", o protestantismo histórico busca a Justiça social como forma de preparar o mundo para o estabelecimento pleno do reinar de Cristo. A regeneração social é tão importante quanto a salvação individual.
  • Ecumenismo: Por não se preocupar tanto com o proselitismo, ser aberto a diversidade de interpretação Bíblica e ter uma prática voltada para o social, o protestantismo histórico é aberto ao Ecumenismo e o diálogo inter-religioso.
  • Liturgia: Em geral tem uma liturgia alinhada à liturgia cristã histórica (Ritos Iniciais, Confissão, Absolvição, Liturgia da Palavra, Liturgia dos Sacramentos, Ritos de Envio) fazem uso de roupas e paramentos litúrgicos e seguem o calendário cristão.

E no Brasil?

Penso que essa tipologia esboçada também serve à realidade brasileira. O Evangelicalismo, assim como nos Estados Unidos, é o ramo majoritário. Os protestantes históricos no Brasil assim como nos EUA, adotam uma postura ecumênica, progressista e aberta ao ministério ordenado de mulheres. As igrejas protestantes que mais se alinham a esta tipologia são as que fazem parte do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs - CONIC (Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil - IECLB; Igreja Episcopal Anglicana do Brasil - IEAB; Igreja Presbiteriana Unida do Brasil - IPU; Aliança de Batistas do Brasil - ABB).

Em relação ao protestantismo histórico ser ligado à denominação principal (mainline), no Brasil, isto se aplica aos luteranos (IECLB) e anglicanos (IEAB), apenas. Ambas, igrejas ecumênicas e progressistas. No presbiterianismo, seguindo nossa tipologia, a denominação principal (IPB) seria classificada como Evangélica. A IPU (Igreja Presbiteriana Unida do Brasil) é a menor denominação presbiteriana do Brasil e pode ser facilmente classificada como protestante histórica.

Por que os protestantes históricos não crescem?

Fenômeno semelhante é observado nos EUA que desde os anos 1970 tem visto o evangelicalismo crescer e o protestantismo histórico decrescer. Deixando questões de financiamento e o fato do evangelicalismo estar bem mais alinhado ao status quo - econômico e político - para uma discussão posterior, creio que as igrejas evangélicas oferecem certezas morais e valores absolutos em um mundo confuso e com isto se tornam uma vertente forte. Já o protestantismo histórico é uma vertente fraca por permitir a diversidade de pontos de vista teológicos, por não fazer exigências rígidas a seus membros, por ir na contramão das pautas conservadoras. 

Mas cá pra nós, ser fraco e insignificante combina muito com o espírito do cristianismo, conforme disse São Paulo em sua primeira carta aos Coríntios:

"Mas Deus escolheu as [...] coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes. Ele escolheu as coisas insignificantes do mundo, as desprezadas e as que nada são, para reduzir a nada as que são, para que ninguém se vanglorie diante dele" (1 Coríntios 1:27-29, NVI).

--- 

Guilherme de Freitas
Teólogo (Unida), psicólogo (PUC Minas) e licenciado
ao ministério da palavra (Igreja Presbiteriana Unida)
.

3 comentários:

  1. Acho fundamental fazer estes esclarecimentos. Mesmo pq muitos críticos da identidade religiosa protestante/evangélica colocam todo mundo no mesmo balaio. Seria interesse, para um próximo texto, explorar a discussão acerca do crescimento das igrejas protestantes históricas, notadamente no Brasil. Como crescer em meio ao avanço do conservadorismo empunhando pelo evangelicalismo? Parabéns pelo texto!

    ResponderExcluir
  2. Otimo Um Dia Queia Conhecer A Igreja Luterana onde Tem Uma Igreja Luterana Em Piracicaba SP

    ResponderExcluir